domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sinais são viscerais

Ela, nervosa, oscilava em toc-tocs um andar constante e oco. O taco do chão brilhava com as formas destorcidas que quase se refletiam na claridade do dia. A cortina de algodão leve não aprendera ainda como escapar de uma janela escancarada. A criancice do vendo brincava com as formas do pano, que até pediria para ser liberto e levantar voo se a dona do quarto não estivesse tão entretida em suas próprias passadas.

Dentro daquele vestido verde musgo ela parecia até planta, parecia até musgo, daqueles que ficam mais belos quando vistos de pertinho. As mãos se entrelaçavam, os dedos ansiosos não sabiam mais a que mão pertenciam; eram apenas dedos, que se estalavam esporadicamente e apertavam-se constantemente. Os cílios escuros e compridos protegiam olhos que tremiam úmidos. Eles não sabiam como disfarçar que o motivo do tremor estava na tela do computador, na cabeceira da cama, no quadro de fotografias. A garota tinha olhos sufocados, pelo agora estranho que a encarava em todas aquelas fotografias. Ela queria disfarçar-se para não ser vista nem por si mesma, queria ficar do verde do vestido, e estava conseguindo. As mãos se lançaram contra o estômago e logo à boca, enquanto envergava-se e corria banheiro adentro. Apenas abaixou e deixou que o corpo fizesse o restante do trabalho.

Ardia, quando tudo subia. Realidade indigerível. Ou talvez estivesse estragada desde a ingestão, ela pensou enquanto abstraía as contrações que ejetavam mudanças no vaso sanitário. Olhou para o estrago e lembrou como fora difícil de engolir sua última refeição. Talvez histórias sejam perecíveis, afinal, ou tenham que ser conservadas em lugares secos e arejados. Mas estava tudo tão úmido há tanto tempo. E agora, a garota suava frio, não mais esverdeada.

O armário sob a pia dava um bom encosto. Ela se apoiou ali esperando as forças darem o ar de sua graça. Um telefone anunciava, de algum lugar no quarto, que sabia cantar. A menina do vestido verde musgo ajoelhou-se e deu descarga em seus afetos indigeríveis. Respirou fundo entre o incômodo do mal-estar e o do toque do celular. Não fez questão nenhuma de se apressar. Quando voltou ao quarto, o telefone havia se cansado sobre a cama. Uma ligação perdida, que mesmo sem olhar, já sabia de quem era.

Começou a ofegar em crescendo. Disparou para o computador e apagou uma pasta inteira de fotos. Enquanto isso, a respiração se tornava mais pesada e audível. Levantou-se deixando a agressividade derrubar a cadeira em um único baque. A garota, então, olhou para si mesma e se sentiu menina, de boba, por tudo que deixara acontecer. Arrancou o vestido verde musgo e tacou-o aos tacos do chão, de raiva. Atravessou aos pulos a cama e puxou a foto sorridente do porta-retrato. Rasgou-a com ferocidade e dentes cerrados. Olhou para o quadro cheio de sorrisos e olhos, do outro lado do quarto. Lançou-se sobre ele em três grandes passadas. Empurrou-os para baixo, soltando-os dos ímãs e deixando que a gravidade fizesse o resto. Depois expirou calmamente.

Ligou o ventilador e deitou-se na cama, exausta de se sentir nauseada por aqueles olhos e sorrisos que não conhecia mais. Fechou os olhos desejando que o vento que a refrescava fosse capaz de varrer o passado para bem longe dali. Ela adormeceu e não viu, mas a cortina no mesmo instante pediu mais vento para poder brincar.

Quando acordou, havia apenas a luz esbranquiçada da lua que batia no chão e depois em seus olhos. Sem sujeira nem bagunça, seu desejo se realizou. Ela rolou na cama espreguiçando-se de felicidade e sentiu o celular tocando suas costelas flexíveis. Segurou-o e verificou a ligação perdida. Naquele instante sentiu-se mais mulher. Não era aquele que a nauseava, mas o que despertava as borboletas do seu estômago. O telefone voltou a tocar quase por coincidência e ela atendeu sem hesitar, curtindo o bater de asas que acalentava e envolvia toda a nova mulher que se tornara.

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