quarta-feira, 13 de abril de 2022

Crônica da vida real

Ela abriu a porta quando me ouviu sair, minhas chaves tilintando na fechadura de casa. Disse-me que havia muito tempo desde a última vez que nos vimos. Perguntei se estava bem, ao que respondeu que sim. Logo complementou com um mais ou menos. E suas feições tornaram-se tristes, como quem estivesse esperando uma fresta, aquele entreabrir de porta para escapar o choro.

Decidi ouvi-la. Falou de sua tristeza, sua solidão e isolamento aos 90 anos dentro de uma pandemia. Presa num entre que não era bem velhice nem doença. Estive o quanto pude. Mas o atraso me chamou e precisei me despedir, fazendo votos de que sua caminhada para espairecer a mente, a qual disse-me que faria logo mais, fosse boa. Dar uma volta ajuda, falou. 

E saí com o peito apertado de mãe, de vó. E de vizinha. 

domingo, 3 de abril de 2022

Sintoma-se

Essa palavra aí saiu sem querer. Curiosamente, pois me sinto sem palavras quando, de repente, meus dedos criam uma absurda, ato falho. Freud há de saber.

Sinto-me sem palavras. E um ser sem palavras é pobre de dizer, de vocabular, conectar. Um ser sem palavras é pobre e tudo o que eu queria é riqueza. Essa riqueza que toca fundo o ser, as células, o dizer. 

Sinto-me sem palavras. Isso me entristece, feito humano que se encolhe, só, se recolhe ao silêncio de quem não sabe expressar. Parece que emburreço de perder palavras, de não saber dizer. Palavra é riqueza de quem sabe formar o que sente. Feito bolo que cresce, rico em histórias e sabores. E sai lindo da forma. Perfeito.

Sinto-me sem palavras. Como nunca antes senti tanto. E me pergunto se a pobreza é de sentir ou de dizer. Se é dos afetos ou dos sons. Se o que me falta é sentir ou sentido. Presente ou passado. Verbo ou substantivo. Infinitivo ou particípio. Participo do infinito? Afeto é o princípio antes de qualquer palavra. Palavra é nomear o infinito, é contorno, é transformar afeto em cognição.

Quero comer palavras, digeri-las, absorvê-las, para poder dizê-las desde mim, da minha boca, meus poros, minha cuca.

E de novo sentir-me.

Cem palavras.