quinta-feira, 28 de abril de 2011

De corpo e água

Piso no que resta de consolo. Vou pisando. Para ver se floresce. Desvio do que parece inevitável, do obscuro, traiçoeiro, molhado. Vou desviando. Enquanto piso. Para ver se ando.

Sem muitos rodeios encontro o indesviável, as ondas que escondem buracos e regam pés de humanidade. Os pés de todos nós, mesmo dos que não pisarem diretamente nas águas das ruas. Águas que não pertencem. Estão. Sempre transitoriamente. Hora nas nuvens, hora no chão. Vem e vão.

Num instante o piso vira poça, rio, lagoa e das águas faço chão. Para ver se ando. Para ver se chego. E me entrego às ondas que trata rua e calçada com igualdade, não as diferenciando em nada. Não vejo meus pés no chão. Não vejo mais.

Sinto. O molhado de tudo, o barulho do remar dos pés. Sinto fundo. Sinto muito. A ironia de continuar me protegendo da água que vem de cima. Sombrinha. O pouco de concreto onde posso segurar, ainda que não me segurar. E sigo.

As ondas já não importam mais quando se está molhado. Enquanto piso o importante é andar para ver se chego. Para ver se vejo novamente meus pés no chão.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Relógio

Ouço o tic-tac constante deste troço irritante que me encara indiferente. Na verdade ele é uma Monalisa mal dissimulada que nem sei se sabe ser o seu canto de uma uniformidade descabida. Só o que resmungo entredentes é um "vê se me esquece", um "vê se se atrasa" ou mesmo "vê se se perde".

Mas para quê pensar nisso se não faz diferença, é uma grande perda de tempo? A questão é: não importa e pronto. Passemos para outro ponto.

Não passo. Não caio mais nessa, argumentos são questão de crença. E a minha é crer que faz diferença persistir nesse ponto. A real perda de tempo é cair nesse discurso homeopaticamente diluído a partir de um veneno chamado otimização. Recuso-me a cair nas suas armadilhas socialmente aceitas. Essa palavra, um completo espetáculo travestido de demanda do mercado, é uma comercial formosura estética. Otimização; a palavra que convence e que compacta o tempo a vácuo.

E é sobre esse tempo que quero falar, o que quase foi sabotado aqui por palavras traiçoeiras que insistem em dizer "passemos a outro ponto". E persisto: não. Porque trato aqui do tempo onipresente, do qual os meus e os seus relógios são uma bem bolada metonímia. Uma dita quarta dimensão aprisionada nos ponteiros da eficácia impausável.

E sigo aqui discorrendo sobre os meus relógios. De fato anseio por sua morte súbita diariamente. Sou malvado, mas justo. Nem se esse troço parasse seria útil! Não me faria sorrir nem sentir meu tempo menos curto. Essa ironia do tempo é um insulto. E pior: não ser útil não implica ser inútil. Confuso. Mas pensar o tempo é parar de enquadrá-lo em extremos. Assim, vejo meus relógios como naturalizadamente cruciais. O tempo é fato, nada mais. Acho que isso resolva dúvidas aparentemente paradoxais.

O problema é que não importa se esse ou aquele, meu ou seu, de todos ou de ninguém, enfim, não importa quantos ou quais geringonças tic-taqueantes enfartem. O tempo não pára! E esse tic-tac agoniante de útil é no máximo inútil quando trava, atrasa ou brinca com minha cara. E, voltando ao paradoxo, concluo: relógios saltam de um extremo a outro sem em nenhum deles se encaixar. São fato, nada mais.

Não importa se eles se revoltem. Simplesmente, se os meus ponteiros param afetam o meu mundo, a minha vida independente de cidadão trabalhador inserido numa sociedade capitalista-burguesa-católica-apostólica-romana, totalmente dependente dos segundos facilmente controláveis pela tecnologia otimizante do meu relógio de pulso obviamente digital.

Caso meu aparato medidor de tempo resolva tirar folga e de quebra atrapalhar o meu trabalho, para o meu infortúnio só o meu mundo será afetado. Eu que me ferro, nada mais. Pois sejam quantos outros relógios mais resolvam tirar folga, não muda nada no total. Existem incontáveis outros para cobrir a escala de um tempo estranhamente inventado e há muito entranhado nos genes, do mundo, sociais.

O tempo, a espécie hors concours, é a que guia enquanto finge dar ao homem todo o poder de sua "autonomia". Será que ninguém vê? Ele é, da Seleção Natural, a chefia! O mundo é dos mais bem adaptados. Disso eu já sabia, mas é bom lembrar que talvez essa espécie não seja a minha.

E o meu relógio dos diabos apita: tempo esgotado. Estou atrasado para voltar ao mundo do trabalho.

E viva a evolução!
_______________

Texto escrito em 23.04.09.