terça-feira, 4 de outubro de 2022

Despedida

Eu achava que queria entender as pessoas, mas eu só queria aceita-las. Eu sempre quis manter a magia, o mistério, o não saber. Entender é também classificar. E eu só quero olhar as pessoas com ar de novidade, com presença e olhos virgens. Eu não quero analisá-las nem tratá-las. Eu quero vivê-las. Eu quero vir vê-las. Eu quero vir. Mas para vir, preciso ir. E ir é tudo o que quero agora.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Crônica da vida real

Ela abriu a porta quando me ouviu sair, minhas chaves tilintando na fechadura de casa. Disse-me que havia muito tempo desde a última vez que nos vimos. Perguntei se estava bem, ao que respondeu que sim. Logo complementou com um mais ou menos. E suas feições tornaram-se tristes, como quem estivesse esperando uma fresta, aquele entreabrir de porta para escapar o choro.

Decidi ouvi-la. Falou de sua tristeza, sua solidão e isolamento aos 90 anos dentro de uma pandemia. Presa num entre que não era bem velhice nem doença. Estive o quanto pude. Mas o atraso me chamou e precisei me despedir, fazendo votos de que sua caminhada para espairecer a mente, a qual disse-me que faria logo mais, fosse boa. Dar uma volta ajuda, falou. 

E saí com o peito apertado de mãe, de vó. E de vizinha. 

domingo, 3 de abril de 2022

Sintoma-se

Essa palavra aí saiu sem querer. Curiosamente, pois me sinto sem palavras quando, de repente, meus dedos criam uma absurda, ato falho. Freud há de saber.

Sinto-me sem palavras. E um ser sem palavras é pobre de dizer, de vocabular, conectar. Um ser sem palavras é pobre e tudo o que eu queria é riqueza. Essa riqueza que toca fundo o ser, as células, o dizer. 

Sinto-me sem palavras. Isso me entristece, feito humano que se encolhe, só, se recolhe ao silêncio de quem não sabe expressar. Parece que emburreço de perder palavras, de não saber dizer. Palavra é riqueza de quem sabe formar o que sente. Feito bolo que cresce, rico em histórias e sabores. E sai lindo da forma. Perfeito.

Sinto-me sem palavras. Como nunca antes senti tanto. E me pergunto se a pobreza é de sentir ou de dizer. Se é dos afetos ou dos sons. Se o que me falta é sentir ou sentido. Presente ou passado. Verbo ou substantivo. Infinitivo ou particípio. Participo do infinito? Afeto é o princípio antes de qualquer palavra. Palavra é nomear o infinito, é contorno, é transformar afeto em cognição.

Quero comer palavras, digeri-las, absorvê-las, para poder dizê-las desde mim, da minha boca, meus poros, minha cuca.

E de novo sentir-me.

Cem palavras.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Feito água na terra

Vejo-me em seu silêncio. Espelho. Você me enxerga com ouvidos atentos. Silencia quando me é difícil dizer, abrindo caminho para que eu seja. Nos nossos medos a gente se conhece. E re-conhece. E ainda mais nos nossos anseios. Queremos apenas ser nós mesmos, nos encontrar nessa mudança. Sermos únicos, o melhor de cada um. E, juntos, sermos nós.

domingo, 22 de março de 2020

Dias Férteis

Quero aqueles que já tive mas nunca foram meus. Quero aqueles que ainda não quis, que não imaginei que quereria. Algo que vem sorrateiro. Assisto. Sorrio. Sem ninguém saber. Aproximo-me em terceira pessoa. Aquela ali não sou eu. É um desenho repetido de mim. Sei o que ela vai fazer e tento contê-la. Porque aquela ali não sou eu. É uma pulsação estranha que insiste em se hospedar aqui dentro e me levar a lugares perigosos. Mudam os nomes, os lugares, a história é a mesma. Tédio, prisão. O coração já não acredita mais. Tem medo de sentir, parece tudo igual. Parece mentira. Duvida.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Rio abaixo

Ando tão a flor da pele que tudo me emociona, que o passado me encontra. Abriu uma nascente em mim, aqui no peito, atravessando os ossos, as entranhas, subindo pela cabeça, inundando a mente. Quedas d’água se arriscam pelo queixo, despencando sem pensar, pois não há outro jeito. É questão de vazão. Pelos olhos, pela boca, pela mãos. 

Olhe bem pra mim. Você pode ver aqui dentro? Daqui às vezes acho que estou fora, mas quando me vejo, percebo que nunca saí de mim. Não está bonito. Bonita. Cadê minha beleza, minha magreza, minhas madeixas, minha juventude, meu tempo, minha chance, meus sonhos, minha realidade, minha voz. Cadê a certeza, o desejo, a coragem. Tenho medo de que me confessando eu  esconda algo de mim. Mas talvez eu devesse mesmo é ter medo de acabar me confessando ao me esconder de mim.

Você vem? 

Estou fragmentada.

O que passou retorna. Pessoas aparecem das páginas viradas. Acho que eram páginas marcadas pela orelha. As pessoas retornaram de orelhas dobradas, vermelhas pra saber quem as chamava, ou falava delas. Curiosidade de gente que espera.

Tenho uma esperança. Uma pessoa. Pedra preciosa de rara. É genuinamente bruta. Comecei a lapidar. A esperança. Eu sempre a guardei. Desde que vi esse ser o guardei pelos olhos, em meu abraço, no desejo de descobrir como ele podia brilhar tanto. Nem sei se quero descobrir. Quero mesmo é amar. Tem coisa mais bela?

domingo, 16 de junho de 2019

Demaquilante

Uma casa meio arrumada, um chão meio limpo. Ela… que dizia não gostar mais de maquiagem. Incandescente, a lâmpada aquece a noite de ventania. A fluorescente não acende mais, apenas quando quer. E nesse frio, nessa solidão… ela não quis. Sentada à mesa o dia passou, instável. Atormentada por suas dúvidas descobriu que sofre de escolhas. De toda ordem. Lembrou-se de quando pensou, de relance, há mais de uma década, que deixar de escolher poderia levá-la a um lugar onde viria a descobrir que queria estar. Sabia, porém, que um dia, teria de se perguntar qual a sua parte nas escolhas que não fez. E aonde isso a levou. Às vezes, concluía estar aprisionada. Não existe pausa real para realizar uma escolha. A vida sempre continua para algum lado. Era boa de persistir, mas ruim em descobrir em que persistia tanto. Apenas seguia, aguentava firme e não desistia. O propósito da sua vida nunca lhe foi claro. Era dividida. Sempre no raso, mas intensa. Teimosa, mas exigente. Escondia tudo isso de todos, quase até de si mesma. Parecia bem-sucedida. Enchia seu dia para mostrar o quanto podia, ou apenas evitando o tempo. A pausa. A dúvida. A dor. Ela… que dizia não usar mais maquiagem.