domingo, 10 de janeiro de 2010

Luz, Câmera, Descarga

O reflexo parece de alguém que conheço, talvez alguém que eu não consiga mais reconhecer. O tempo passou e a pessoa dentro dessa imagem que vejo pode ter mudado, pode ter feito de mim um novo eu.

Olho fundo naqueles olhos e sinto vestígios de uma inocência sonhadora que tenta persistir em alguns pontos, mas que podo demais. Vejo aquele sorriso mais aberto, mais simpático, e gosto que ele agora seja assim. As bochechas são mais avermelhadas, dentes menos apinhados, mas os mesmos pontudos de sempre. E os cabelos... Mais charmosos e curtos. Um rosto com mais contorno de mandíbula; gosto disso também.

O que não gosto muito está menos na pele e nas curvas e muito mais nas voltas do destino pulsando não apenas na minha cabeça. Pulsando em mim inteira, em alma, corpo e o que quer que seja. Realmente, o mundo gira, gira, gira e gosta de revisitar lugares – talvez porque eles mudem com as voltas, nem que um mero cambiar de detalhes. Não digo isso porque todo mundo diz, ainda que se dito por muitas pessoas a idéia mostra o mínimo de sentido que faz. Coisas acontecem e mesmo que não avisem, sabemos que continuarão acontecendo. A magia é descobrir o que virá, o que a próxima respiração trará.

Esses dias, com mais uma respiração veio uma visita inesperada. Um velho conhecido bateu à minha porta e gostei tanto de espiá-lo pelo olho mágico que quase me esqueci de abri-la. Mentira, eu jamais esqueceria. Mas a surpresa foi tão gostosa que tentei explodir de empolgação por trás da porta, sem que ele presenciasse minha eufórica e desconcertante reação. Então eu fiquei lá, olhando os olhos dele desviando da porta para o chão, as mãos oscilando do cabelo à campainha. Até que abri, infinitamente nervosa ainda.

Ele vestia verde oliva, minha cor preferida nele, e calça jeans. Impecável. Pele clara, levemente dourada e... Chega. Não quero relembrar o que cansei de ver. Oi, foi o que eu disse. Oi. Dois sem graça na soleira da porta. Já falei que constrangimento me enoja? Não, pode ter certeza que isso eu não falei – para ele, claro. Mas não lhe disse algo tão doce, contudo. Estava com raiva, por tê-lo esperado demais. Tudo bem que não tínhamos marcado nada, definitivamente. Nem me lembro da última vez que olhei para aqueles olhos tão perto de mim. Acho que semana passada, na tela do meu computador. Fotos. Mas ao vivo, não sei. O que está fazendo aqui?, continuei. Vim ver você. Por quê?, perguntei. Porque me lembrei de ter prometido fazer isso uma vez. Não me lembro, falei. Disse que buscaria você para irmos ao cinema. Mas faz muito tempo. Alguns anos... talvez. A voz dele sumiu. Foi a primeira vez que o vi sem graça. E o que significa isso: um retorno após amnésia profunda ou atraso?, perguntei inspirada pela revolta. Ele abaixou a cabeça parecendo sentir dor. Certo, ele não tinha resposta. Nem eu. Restara em mim apenas uma imensa vontade de que ele fosse embora de novo, para que eu me esquecesse logo do seu breve retorno. Mas me surpreendi, ele tinha uma resposta: Isso significa vergonha na cara. Era tudo que eu esperava que ele viesse a ter um dia, pensei. Ele me olhou com estreiteza. Não me contive. Está com dor?, perguntei. E fiquei a ouvir um pouco de silêncio antes da voz dele me dizer: sim, muita. Estranhei num juntar de sobrancelhas. E sem nada para preencher mais outro longo vazio pensei no quanto seus cabelos haviam mudado. Aquilo me incomodou imensamente, por me lembrar do quanto já quis ter aqueles fios entre meus dedos. Claro que já quis arrancá-los – como agora, por exemplo, mais eram tão curtos que não valeria à pena; mas o nó na garganta era por causa das vezes que já quis acariciá-los. Desejos são tão cruéis, pensei. Eles fingem ter ido embora só pelo prazer de retornarem intactos, provando-lhe que aquele reflexo tão diferente no espelho ainda tem muito do que você costumava ser. Dor... Agora somos dois a senti-la – mas isso eu não falei. Ainda era a vez dele: espero que não seja tarde demais. Para quê?, perguntei. Desta vez eu faria tudo ser esclarecido; tentar entender subentendidos não me levara muito longe, apenas a vários tropeços em minhas próprias pernas. Já ouvi tanta resposta no que jamais foi dito... Isso não faz bem, sério. Mas desta vez minha pergunta o forçou a dizer: Espero que não seja tarde demais para um reinvestimento. Olhei-o tentando entender se eu havia escutado direito. Talvez isso o tenha feito confessar mais depressa: Reinvestir em você. Meu coração fundiu com aquelas palavras. Você não tem idéia do quanto esperei por isso, respondi fugazmente embargada. Ele pareceu esperançoso até ouvir o que resto da minha resposta: Mas esperar cansa e com o tempo desencanta. Não vale a pena um reinvestimento agora. E sabe por quê? Porque seu investimento inicial foi tão ínfimo e imperceptível que não fez diferença. Não perca seu tempo com o mesmo projeto. Ele está abandonado há tanto tempo. Você não se mostrou disposto a se dedicar da primeira vez para fazê-lo acontecer. Por que estaria agora? E, incrivelmente, ele insistiu em ter resposta: Justamente pelo pouco que fiz no começo. Eu preciso de uma chance para fazer diferente. Mas nem sempre temos uma segunda chance, rebati. Os olhos dele se encheram de lágrima, o que eu jamais tinha visto nos olhos do ele que eu conhecia. Isso vale para agora?, a voz dele saiu como se não quisesse. Eu brigava com a pouca capacidade dos meus olhos, que mal podiam esperar por verter lágrimas, enquanto tentava fazer minha voz atravessar o bolo invisível que ameaçava fechar a garganta. Sim, concluí. Ele aceitou, talvez por não ter mais voz nem força para segurar o mesmo que eu estava segurando. Se estivesse tão difícil para ele quanto estava para mim, não me restava escolha a não ser devolver-lhe a privacidade. Fechei a porta atrás das costas dele – sim, ele já tinha se virado – e espiei pelo olho mágico. Ele não estava mais lá.

Deslizei a espinha pela porta de madeira ultra-lisa, deixando que todo o resto descesse junto. Tudo, absolutamente tudo meu estava ao chão. Do meu corpo aos meus sonhos. O que eu sentia não cabia em uma só palavra. Eu simplesmente sabia que tinha de ser assim. Não havia segunda chance, não me pergunte por quê. Não, não foi por vingança nem orgulho, mas por dor. Por saber que o que eu sentia era muito, muito maior que antes. Mas não era mais amor.